Correr está além de onde nossas pernas podem nos levar

                                                          Foto de Anderson Araujo - Anonima

Correr na rua, ou Running, como o velho/novo esporte é chamado atualmente, foi uma das grandes descobertas da minha vida nos últimos 4 anos. Pois é, o que aprendemos naturalmente desde pequeninos se transformou em esporte. O Running não é como corridas, maratonas, meias-maratonas, é corrida de rua. O barato do Running é que ele é uma espécie de esporte "for fun", democrático, as vezes solitário ou em turmas. O objetivo não é vencer mas superar as suas próprias marcas, suas metas e barreiras. O seu desafiante é você e mais ninguém. Não há competição, só o meu recorde, a minha meta. Copiando um slogan que assisti em um filme: Just Sport, No Competition

O legal do Running é que você se permite fazer algumas coisas que um esporte de competição não permite, por exemplo ter devaneios, desfocar, simplesmente praticá-lo. Percebi que este esporte me ajuda em muitos aspectos, inclusive nas reflexões da minha vida. Se eu escrevesse tudo o que penso em uma corrida...eita... mas confesso que resolvi muitos problemas durante o exercício. Meditações, conclusões, pensamentos filosóficos, pensamentos bons e ruins, desabafos, verdades aceitas, resignação, centenas de musicas ouvidas, quilometros corridos, calorias perdidas, mente renovada, corpo suado e cansado, noites bem dormidas, auto-estima melhorada, estes são alguns dos benefícios palpáveis que tive. Estas são as minhas motivações para correr.

Outra coisa legal de correr em lugares públicos são as pessoas. Seja pelas ruas de seu bairro, nos parques, nas competições, sempre há um #runner correndo. O corredor nunca está sozinho, mesmo que ele corra sozinho. Sempre há alguém que passa por você, te cumprimenta, dá uma palavra de incentivo e segue o seu caminho. Quando me deparo, ou melhor, passo por estas pessoas, inevitavelmente me pergunto: por que ela corre?

Nas corridas do dia-a-dia já encontrei gente de todo o tipo. Tem um cara no Parque do Ibirapuera que mais canta do que corre (me parece o louco mais de bem com a vida que já vi), gente que desfila seus corpões e "roupitchas" apertadas (não sei como conseguem), gente bonita, gente feia, pessoas gordinhas e magrinhas, gente que já ultrapassou a linha do "for fun", gente que usa a corrida como desculpa para arrumar um namorado(a), gente que corre de bandido também; a democracia impera, as pessoas correm por diversos propósitos, um universo do qual nunca imaginei me permitiria achar pessoas tão diferentes, a mais intrigante é a que corre e pega lixo. Sim, lixo!

Desculpem se eu me estender muito neste blog, mas acho que vale a pena.

A primeira vez que a vi percebi que ela ficava de um lado para o outro na rua, mudando de calçada a toda hora, como se procurasse alguma coisa. Corre, abaixa, sobe, dá outra volta, pega alguma coisa, abaixa, corre, pega de novo, sempre juntando tudo o que pega em uma sacolinha em sua mão...ufa. E eu pensei: é um exercício para a barriga, só pode ser. Só de pensar em fazer algo desse tipo minhas duas filhas: hérnia lombar 1 e hérnia lombar 2 já se retorcem toda.

No primeiro momento eu pensei, essa mulher é louca; natural do ser humano, pré-julgar. Pensei também: "Deve ser indignação com a sujeira no chão, não é muito, mas tem. Não deve estar em um bom dia." Os dias foram passando, as corridas se acumulando e a moça sempre lá com a repetição de seus movimentos quase que como uma máquina de produção: corre, abaixa, pega, guarda, corre, abaixa...

No primeiro dia de 2012 estava eu lá correndo e imaginando que estaria somente eu e meu vício pela corrida nas ruas do Morumbi Sul, quando de repente, sim, estava a incansável corredora do lixo: corre, abaixa, pega, guarda, corre, abaixa... Não é possível. Não é possível! Tem que haver um propósito para isto. Pensei: "vou falar com ela. Vou perguntar porque ela faz isso!" Mas ela tem uma cara tão feia, tão brava que logo desisti deste pensamento e achei melhor deixá-la com o seu "mantra físico", mas claro, eu não poderia deixar passar sem registro, saquei meu celular, enchi o pulmão de ar, dei uma acelerada no passo, me aproximei devagar, foquei a câmera e (foto acima). Tá aí a foto da moça corredora e pegadora de lixo. Terminei minha corrida e ela continuou na infindável saga por ruas mais limpas.

Preciso ser sincero que o propósito deste blog era falar sobre motivações, bla, bla, bla, mas durante o desenvolvimento me inclinei as reflexões que fiz sobre os atos desta moça. Acho que a principal reflexão é que resignação é uma coisa muito particular e da personalidade de cada um. Nossa anonima e seus atos são só gotas em um oceano de problemas sociais, mas do jeito dela ela faz a parte que lhe cabe. Não espera ser servida ou pela solução dos que regem nossas vidas civis, mas ela serve a sua comunidade. Senso de cidadania, direitos e principalmente deveres.

Pode também nem ser isso, pode ser só uma forma de treinar e "chapar sua barriga", até porque ela não faz arte nenhuma com tudo o que recolhe, confirmo isso porque no final todo o "material" recolhido é jogado na lixeira pública e então ela segue seu caminho, talvez ela apenas junte o útil ao agradável, mas para mim serviu de reflexão sobre o meu papel como cidadão, sobre meus direitos e deveres com a minha rua, meu bairro, minha cidade e meu país. Nos preocupamos tanto em salvar o planeta, mas não pensamos nem na rua que andamos, na organização das nossas coisas.

No fim de todas as coisas, o que vale é o legado que você deixa, no mínimo a reflexão que você deixa para as pessoas.

No caso da moça da foto e para mim também, correr está além de onde nossas  pernas podem nos levar.